Sou filha única.
Por culpa e Graça dos meus pais.
Tive um irmão que morreu antes de eu ter nascido.
Tive mais dois irmãos que morreram antes deles próprios terem nascido.
Suponho que fui uma espécie de milagre.
Sei, por isso, coisas que, por pudor, não se dizem.
Sei onde e como fui concebida.
Que era Verão.
Que os meus pais tinham ido à praia.
Sei que se algum dos meus irmãos tivesse sobrevivido, eu não teria nascido.
A minha mãe só queria um filho.
Sei porque ela me contou. Sei o porquê.
Não sei o que é ter irmãos.
Não sei o que é ser diferente do que sou.
Sei que sou diferente do que aquilo que seria se tivesse um irmão.
Tenho o AMOR único, incondicional, insubstituível, imenso e intenso dos meus pais a cobrir-me.
Tenho o AMOR único, incondicional, insubstituível, imenso e intenso dos meus pais a pesar-me.
Nunca tive dúvidas sobre esse amor. Nunca tive de lutar por ele.
Era-me servido todos os dias.
Era-me cobrado todos os dias.
No tempo em que nasci, todos os meninos da escola tinham irmãos.
O meu pai, às escondidas, dizia-me:
"Não queiras irmãos, filha, não sejas palerma. Vão estragar as tuas coisas ".
A minha mãe era ainda mais "feroz":
"Se tiveres irmãos, não podes estudar".
Desta maneira, quando alguém, na família ou fora dela, me perguntava: "Então, não queres um irmãozinho?"
Eu respondia: "NÃO".
Alto e bom som. Determinada e sem medo.
Nunca quis ter um irmãozinho para brincar.
Para brincar tinha os primos e as primas.
Numa família grande, rural e de província como a minha, filhos únicos eram raros.
A minha avó chamava-me
"A morgadinha".
E era verdade. Era a princesa.
Nunca gostei de comer.
Ainda hoje não gosto.
A minha avó fazia sopa de feijão de propósito para mim. Porque eu comia a dela.
Não comia a da minha mãe. Só a da minha avó. Da panela
"suja". Porque era feita em cima da lareira, ao lume.
Só dessa.
Comia a
"brindeira" (merendeira - era uma bolinha de pão cozida no forno a lenha) com manteiga.
As
"brindeiras" eram os mimos da minha avó para os netos.
Quando amassava e cozia o pão, tendia uma bolinhas pequeninas para nós.
Comiamo-las quentes a sair do forno. As dos meus primos com açúcar louro. A minha com manteiga.
Os meus avós "davam-nos" (depois cresciam, iam para a panela e não eram de ninguém) os pintos amarelinhos, quando eles bicavam os ovos para nascer.
Eu escolhia sempre primeiro.
Tive cães e gatos
só meus.
Uma das minhas gatas pariu no meu quarto.
A minha tia ia sempre chamar-me quando nasciam os leitões. Para ver a porca dar de mamar.
Tive uma ovelha chamada
"giribi".
Tive uma ameixoeira de
"rainhas cláudia".
Os primos, e os avós, vejam bem, pediam-me "autorização" para as comer.
Tive um
"aburunheiro".
Não sabem o que é.
Acho que já não existem.
Era uma árvore que dava uns frutos pequenos, parecidos com ameixas.
Os
"abrunhos".
O meu avô nunca a arrancou, mesmo quando ela já estava velha e dava pouca fruta. Porque eu gostava de
"abrunhos".
Fui mimada de maneiras que já ninguém é. Porque só nesse local, nessa altura e nesse tempo, faziam sentido.
Não, não tive roupas de marca.
Nem tantos brinquedos que me fizessem esquecer de brincar com o que era importante.
Os primos. A terra. Os animais. Os livros.
Não me lembro de não saber ler.
Lembro-me da minha mãe me fazer ler em cima de um banco para toda a gente ouvir.
Era a "matança do porco" e estava lá toda a vizinhança.
"As mulherzinhas".
Todos me ofereciam livros.
Estudei.
Como sempre e só a côdea do pão. O que irrita sobremaneira o meu marido.
Ao longo dos anos tenho vindo a melhorar, mas ainda dou por mim a tirar o que gosto mais da travessa, independentemente dos gostos das outras pessoas.
Nunca pergunto se alguém quer um bocadito do que quer que seja que esteja a comer. Para mim é perfeitamente natural. Para o meu marido não é.
Diz: "Podias, ao menos ter oferecido". Peço sempre desculpa e ofereço depois. Nunca me lembro de oferecer antes.
Tenho sempre razão. O que ninguém suporta.
Espero sempre que a minha vontade seja feita. Normalmente é.
Não gosto de dividir o meu espaço.
O meu lado da cama.
O meu armário.
O meu lavatório.
Empresto. Sem mágoas. Nem sequer me importo se me estragam aquilo que empresto.
Mas têm de pedir.
Ninguém, e isto aplica-se também às minhas filhas, a quem dou tudo, pode mexer no que é meu, sem me perguntar primeiro.
Preciso de estar sozinha.
Sou encantatória (não encantadora) como todos os filhos únicos que conheço.
Teço a minha teia. Sei quem vai cair.
Nunca viajei mais que quinze dias seguidos.
Se vou de avião só telefono à minha mãe quando aterro.
Nunca fui capaz de ir trabalhar para fora dos limites do Concelho.
Nunca fui capaz de ir estudar "para o estrangeiro".
Tenho sempre medo de não estar "à altura".
De não ser o que esperam que seja.
De falhar.
Por vezes pago um preço muito alto.
Não me queixo.
Cada um de nós tem caminhos.
Estradas.
Bifurcações.
Cruzamentos.
E escolhas.
Tenho dois primos, Únicos, como eu. Muito mais novos.
A minha prima, nada e criada em França. Chegada à idade adulta decidiu voltar.
Os pais ficaram Lá.
O meu primo-irmão-filho, foi-se embora.
Deixou a mãe e foi.
Vem uma ou duas vezes por ano.
Janta e Vai.
Nem sequer ainda me fez "primtiavó", o malandro!
Envelhecer é difícil.
Vejo-me envelhecer todos os dias.
Vejo os meus pais mais velhos todas as semanas.
Espero que Deus não lhes dê a dor de me enterrarem.
Se assim for, vou ser eu a enterrá-los.
Nesse dia.
Nesse dia ficarei só.
A família para onde vamos. A que formamos. É diferente daquela de onde viemos.
Ninguém vai ter histórias para me contar.
Ninguém se vai lembrar de mim quando era bebé.
É por isso que, agora, queria ter um irmão.
Para poder não perder esse espaço de aconchego. De pertença.
Quando isso acontecer, ninguém vai sentir a mesma dor.
Não a vou poder partilhar.
Só partilhamos o que conhecemos.
O Cálice.
Única Escolha.
Única Eu.